terça-feira, 11 de junho de 2019

O iPhone 6 e a Melusina medieval, por Fábio de Oliveira Ribeiro


Só uma coisa deve ter maravilhado mais os seres humanos primitivos que a descoberta de como fazer fogo e o empregar de maneira útil: a noção de tempo. Ser maravilhoso que nos contem e que a todos devora, o tempo existe fora dos homens e dentro deles, pode ser dividido, pode ser discursivamente flexionado para frente tanto quanto pode retroagir.

O tempo continua nos maravilhando e nos atormentando desde os primórdios. Aproveitemos o tempo que nos resta, diria um poeta romano. Poderemos saborear o tempo que ainda há de passar, dizem os modernos. Há o tempo da narrativa, o tempo da vida, o tempo da história, o tempo geológico, o tempo mítico e cosmogônico em que toda noção de tempo se desfaz. Não há tempo na eternidade. Havia tempo antes do Big Bang?
Nas estrelas azuis, gigantes que contém vários sóis como o nosso, o tempo não é o mesmo tempo que existe nas estrelas de neutrons ou nos buracos negros. O tempo no sol é diferente do tempo na terra, pois a matéria só existe como plasma e átomos são constantemente submetidos à fusão nuclear só a degradação de hidrogênio em hélio e a deste em outro elemento químico é constante. Nenhuma vida ou narrativa é possível onde a natureza é tão bruta que não pode gerar vida. Vida é coisa que o tempo solar gera a 8 minutos de distância à velocidade da luz. A constante alternância entre noite e dia certamente deu forneceu aos homens a primeira noção de tempo.

Mas não é do tempo que quero falar. Falo deste assunto, para entrar num outro. O assunto que me cativa é o maravilhoso. Os gregos viviam cercados de seres maravilhosos, que interferiam nas suas guerras e narrativas com uma naturalidade que nos causa estranhamento. Os bestiários medievais, contudo, provam que o cristianismo não foi capaz de substituir totalmente a fabulação pelo humanismo pregado no Monte das Oliveiras.


Um dos seres medievais maravilhosos que mais me cativa é a Melusina:
“A personagem Melusina surge na literatura latina, depois vernacular, da Idade Média no século XII e no início do século XIII. Entre o começo do século XIII e o fim do XIV, essa mulher-fada pouco a pouco adquire de preferência o nome Melusina, que a associa a uma grande família senhorial do oeste da França: os Lusignan. Em seu livro crítico sobre a corte de Henrique II da Inglaterra, De nugis curialium, o clérigo Gautier Map conta a história conta a história do jovem senhor Heno dos dentes grandes, que, em uma floresta normanda, encontra uma moça, muito bonita e vestida com roupas reais, em prantos. Ela se abre com ele, relatando que sobreviveu ao naufrágio do navio que a estava levando para a França, com cujo rei ela devia se casar. Heno e a bela desconhecida apaixonam-se, casam-se, e ela lhe dá uma belíssima progenitura. Porém, a mãe de Heno percebe que a jovem, que finge ser devota, evita o começo e o fim das missas, o rito de aspersão da água-benta e a comunhão. Intrigada, ela faz um buraco no quarto de sua nora e surpreende-a tomando banho em forma de dragão e depois retomando a sua forma humana. Informado por sua mãe, Heno traz um padre para aspergir sua mulher com água-benta. Ela pula em cima dos telhados e desaparece no ar guinchando intensamente. De Heno e sua mulher-dragão restará uma numerosa descendência ainda na época de Gautier Map.” (Heróis e maravilhas da Idade Média, Jacques Le Goff, editora Vozes, Petropolis, 2009, p. 185/186)

Um pouco adiante Jacques Le Goff afirma que Melusina:

“…ocupa um lugar de destaque no imaginário europeu proveniente da Idade Média, e isso graças a duas características. De um lado, ela combina o positivo e o negativo no interior das relações entre os seres humanos e sobrenaturais. Inicialmente fadas boas que trazem riqueza, filhos e felicidade aos humanos, as Melusinas acabam se tornando diabólicas. No século XVI, o famoso alquimista Paracelso legou à posteridade a seguinte imagem diabólica de Melusina: ‘As melusinas são filhas de reis desesperados por causa de seus pecados. Satã sequestra-as e transforma-as em espectros’. A segunda característica é o fato de Melusina ser o elemento essencial de um casal. Ela se manifesta através de um amante-esposo e realiza perfeitamente o casal fada-cavalheiro, com seus sucessos e fracassos. Esta fada do feudalismo transmitiu ao imaginário europeu o sentido do sucesso e do fracasso da sociedade feudal e o dos riscos, a um prazo mais longo, da sociedade ocidental. Ela mostra que o cavaleiro de ontem e o capitalista de hoje proporcionam prestígio e êxito à sociedade ocidental, mas também tem um pacto com o diabo.” (Heróis e maravilhas da Idade Média, Jacques Le Goff, editora Vozes, Petropolis, 2009, p. 195/196)
São três as idéias que me cativam nesta história: primeiro a sedução e o casamento entre o homem e a Melusina; segundo o sucesso e o fracasso desta união entre um ser humano e um ser maravilhoso; terceiro, a inevitabilidade do estranhamento e do desmascaramento da farsante e suas consequencias.

Vivemos numa sociedade de consumo. Portanto, podemos dizer que a Melusina como que se incorpora em cada uma das mercadorias que se tornam objeto de desejo. O segredo do mercador moderno é transformar seu produto, qualquer que seja ele, em algo atraente e desprovido de paradigmas quanto a sedutora mulher-dragão medieval. O objetivo do mercado é burlar a racionalidade do consumidor, criando nele um desejo irresistível de unir-se à coisa como o infeliz Heno teve de casar com a Melusina. É inegavel que há algo de sexual e maravilhoso na relação entre este consumidor brasileiro e seu novo iPhone 



Desfeita a mágica do momento em que o consumidor se casou com seu novo iPhone 6 (pela obsolescência programada da mercadoria, pelo lançamento de um novo modelo, etc…), o que era fonte de prestígio e felicidade desaparece e o dragão foge pela janela para se incorporar em uma nova mercadoria.

Estamos totalmente mergulhados num mundo melusínico. 


Portanto, precisamos tomar cuidado com o que desejamos. Não porque consumir seja em si um mal, mas porque podemos nos tornar símbolos de uma nova Idade Média. A euforia do brasileiro que se tornou o primeiro comprador do iPhone 6 é evidente. Ele crê que entrou para a história. Mal sabe como os historiadores podem maltratá-lo daqui a um ou dois séculos. O casamento dele com seu iPhone-melusina apenas começou. Daqui um ano ou menos o dragão que habita seu aparelho o abandonará e ele já terá sido esquecido pela imprensa. 


Comentários

  1. Se o papagaio já não cagou
    Se o papagaio já não cagou no iPhone do “Vitor em Sydney”(aqui).,..o lance do papagaio foi uma história contada por Zeca Baleiro numa palestra.,.artista que é, no seu tempo da arte falou do  encanto do seu filho para com seu celular de última geração.,..de repente o filho virou uma espécie de homem-ilha e seu aparelho. ou seja, um autista, até o dia em que chamou os amigos prá casa, decerto pra exibir o tesouro: foi exatamente este dia que o  papagaio escolheu para dar uma bela cagada no troço…rss

    Responder      
    • Eu realmente não conhecia
      Eu realmente não conhecia esta história. Grato pelo comentário. A bosta do papagaio neste “causo” foi a água benta que revelou e inutilizou a melusina no referido telefone. Ha, ha, ha…
      Responder      
  2. Tá me cheirando a inveja do garoto
    Tá me cheirando a inveja do garoto, justificada pelo belo e culto texto. Quanto a mim continuo com meu iPhone 4, com seu charmoso vidro trincado que de modo algum foi tragado pela obsolescência programada.
    Responder      
    • Quem não é capaz de
      Quem não é capaz de apresentar argumentos racionais, sempre “emocionaliza” sua avaliação ao fazer ataques pessoais: gostei, não gostei, está com inveja, eu odeio isto, amo aquilo etc… É só o que os irracionais tem a dizer. Você está entre eles?
      Responder      
  3. iphone 6 e o tempo… bendita
    iphone 6 e o tempo… bendita revolução industrial que criou a rotina da fabrica e estabeleceu que seria longa… até que os trabalhadores a limitaram em 8 horas.. depois inventaram o despertador para que ninguem mais perdesse a hora do turno.. mas o tempo não para e o capitalismo inventou a tecnologia digital. e agora carregamos nosso iphone por onde vamos para nos ocupar por 24 horas diarias.. a primeira coisa que ele nos faz é nos tirar da cama na hora programada.. o desejo é pró- capitalismo: para nos controlar e para nos ocupar…
    e olhem só o que descobri: antes dos despertadores, havia o acordador profissional.  em plena revolução industril, para não perder a hora, trabahadores contratavam alguém para acordá-los. despertadores existiam mas não eram confiaveis.
    Responder      
  4. “O valor, portanto, não traz
    “O valor, portanto, não traz escrito na testa aquilo que ele é. Pelo contrário, o valor metamorfoseia cada produto do trabalho num hieróglifo social.”
    Carlos Marx, em Fetichismo da mercadoria.

    Responder      
    • O feitiche da mercadoria, tal
      O feitiche da mercadoria, tal como foi descrito por Marx, é bem menos sedutor que o iPhone-6. O fenômeno que Marx descreveu é qualitativamente diferente do que aquele que estamos a ver. A notícia na notícia (que não foi explorada pelo jornalista) é o absurdo criado pelo desejo de consumo: pessoas se deslocando de um continente para outro, formando filas imensas para obterem imediatamente mercadorias intensamente valorizadas por uma mídia globalizada e que em pouco tempo serão “mercadorias de ontem”. Nada disto ocorria com tamanha intensidade e velocidade na segunda metade do século XIX.
      A feitiche da mercadoria deixou de existir, bem vindo à nova Idade Média com sua magia da mercadoria melusínica.    
      Responder      

Nenhum comentário:

Postar um comentário