Só uma coisa deve ter maravilhado mais os seres humanos primitivos que a descoberta de como fazer fogo e o empregar de maneira útil: a noção de tempo. Ser maravilhoso que nos contem e que a todos devora, o tempo existe fora dos homens e dentro deles, pode ser dividido, pode ser discursivamente flexionado para frente tanto quanto pode retroagir.
O tempo continua nos maravilhando e nos atormentando desde os primórdios. Aproveitemos o tempo que nos resta, diria um poeta romano. Poderemos saborear o tempo que ainda há de passar, dizem os modernos. Há o tempo da narrativa, o tempo da vida, o tempo da história, o tempo geológico, o tempo mítico e cosmogônico em que toda noção de tempo se desfaz. Não há tempo na eternidade. Havia tempo antes do Big Bang?
Nas estrelas azuis, gigantes que contém vários sóis como o nosso, o tempo não é o mesmo tempo que existe nas estrelas de neutrons ou nos buracos negros. O tempo no sol é diferente do tempo na terra, pois a matéria só existe como plasma e átomos são constantemente submetidos à fusão nuclear só a degradação de hidrogênio em hélio e a deste em outro elemento químico é constante. Nenhuma vida ou narrativa é possível onde a natureza é tão bruta que não pode gerar vida. Vida é coisa que o tempo solar gera a 8 minutos de distância à velocidade da luz. A constante alternância entre noite e dia certamente deu forneceu aos homens a primeira noção de tempo.
Mas não é do tempo que quero falar. Falo deste assunto, para entrar num outro. O assunto que me cativa é o maravilhoso. Os gregos viviam cercados de seres maravilhosos, que interferiam nas suas guerras e narrativas com uma naturalidade que nos causa estranhamento. Os bestiários medievais, contudo, provam que o cristianismo não foi capaz de substituir totalmente a fabulação pelo humanismo pregado no Monte das Oliveiras.
Um dos seres medievais maravilhosos que mais me cativa é a Melusina:
“A personagem Melusina surge na literatura latina, depois vernacular, da Idade Média no século XII e no início do século XIII. Entre o começo do século XIII e o fim do XIV, essa mulher-fada pouco a pouco adquire de preferência o nome Melusina, que a associa a uma grande família senhorial do oeste da França: os Lusignan. Em seu livro crítico sobre a corte de Henrique II da Inglaterra, De nugis curialium, o clérigo Gautier Map conta a história conta a história do jovem senhor Heno dos dentes grandes, que, em uma floresta normanda, encontra uma moça, muito bonita e vestida com roupas reais, em prantos. Ela se abre com ele, relatando que sobreviveu ao naufrágio do navio que a estava levando para a França, com cujo rei ela devia se casar. Heno e a bela desconhecida apaixonam-se, casam-se, e ela lhe dá uma belíssima progenitura. Porém, a mãe de Heno percebe que a jovem, que finge ser devota, evita o começo e o fim das missas, o rito de aspersão da água-benta e a comunhão. Intrigada, ela faz um buraco no quarto de sua nora e surpreende-a tomando banho em forma de dragão e depois retomando a sua forma humana. Informado por sua mãe, Heno traz um padre para aspergir sua mulher com água-benta. Ela pula em cima dos telhados e desaparece no ar guinchando intensamente. De Heno e sua mulher-dragão restará uma numerosa descendência ainda na época de Gautier Map.” (Heróis e maravilhas da Idade Média, Jacques Le Goff, editora Vozes, Petropolis, 2009, p. 185/186)
Um pouco adiante Jacques Le Goff afirma que Melusina:
“…ocupa um lugar de destaque no imaginário europeu proveniente da Idade Média, e isso graças a duas características. De um lado, ela combina o positivo e o negativo no interior das relações entre os seres humanos e sobrenaturais. Inicialmente fadas boas que trazem riqueza, filhos e felicidade aos humanos, as Melusinas acabam se tornando diabólicas. No século XVI, o famoso alquimista Paracelso legou à posteridade a seguinte imagem diabólica de Melusina: ‘As melusinas são filhas de reis desesperados por causa de seus pecados. Satã sequestra-as e transforma-as em espectros’. A segunda característica é o fato de Melusina ser o elemento essencial de um casal. Ela se manifesta através de um amante-esposo e realiza perfeitamente o casal fada-cavalheiro, com seus sucessos e fracassos. Esta fada do feudalismo transmitiu ao imaginário europeu o sentido do sucesso e do fracasso da sociedade feudal e o dos riscos, a um prazo mais longo, da sociedade ocidental. Ela mostra que o cavaleiro de ontem e o capitalista de hoje proporcionam prestígio e êxito à sociedade ocidental, mas também tem um pacto com o diabo.” (Heróis e maravilhas da Idade Média, Jacques Le Goff, editora Vozes, Petropolis, 2009, p. 195/196)
São três as idéias que me cativam nesta história: primeiro a sedução e o casamento entre o homem e a Melusina; segundo o sucesso e o fracasso desta união entre um ser humano e um ser maravilhoso; terceiro, a inevitabilidade do estranhamento e do desmascaramento da farsante e suas consequencias.
Vivemos numa sociedade de consumo. Portanto, podemos dizer que a Melusina como que se incorpora em cada uma das mercadorias que se tornam objeto de desejo. O segredo do mercador moderno é transformar seu produto, qualquer que seja ele, em algo atraente e desprovido de paradigmas quanto a sedutora mulher-dragão medieval. O objetivo do mercado é burlar a racionalidade do consumidor, criando nele um desejo irresistível de unir-se à coisa como o infeliz Heno teve de casar com a Melusina. É inegavel que há algo de sexual e maravilhoso na relação entre este consumidor brasileiro e seu novo iPhone 6
Desfeita a mágica do momento em que o consumidor se casou com seu novo iPhone 6 (pela obsolescência programada da mercadoria, pelo lançamento de um novo modelo, etc…), o que era fonte de prestígio e felicidade desaparece e o dragão foge pela janela para se incorporar em uma nova mercadoria.
Estamos totalmente mergulhados num mundo melusínico.
Portanto, precisamos tomar cuidado com o que desejamos. Não porque consumir seja em si um mal, mas porque podemos nos tornar símbolos de uma nova Idade Média. A euforia do brasileiro que se tornou o primeiro comprador do iPhone 6 é evidente. Ele crê que entrou para a história. Mal sabe como os historiadores podem maltratá-lo daqui a um ou dois séculos. O casamento dele com seu iPhone-melusina apenas começou. Daqui um ano ou menos o dragão que habita seu aparelho o abandonará e ele já terá sido esquecido pela imprensa.
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